quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Tácticas de ser puzzle III

Passado um mês das peripécias das minhas amigas vacas, voltei à dita exploração do mesmíssimo Sr., desta vez para tratar das suas ovelhas.

Começámos, ainda o dia não tinha raiado, com a preparação dos animais.

Com as ovelhas, as técnicas de imobilização são bastante relativas visto que é impossível evitarmos alguns pisões, patadas e marradas bem típicos destes animais. O truque é fazermos currais pequenitos que se vão enchendo gradualmente com animais até estes quase não terem espaço para se mexerem. Há que ter em atenção contudo em deixar algum espaço livre, não só para as ovelhas não se armarem em “sardinhas em lata”, apertarem-se demais e não conseguirem respirar ou espezinharem-se umas às outras, como também para a veterinária e os seus ajudantes conseguirem circular pelo meio delas e fazerem o seu trabalho de forma eficaz e sem grande sofrimento. Tarefa quase sempre complicada... É que as ovelhas tem o mau hábito de fazerem concorrência às nossas “Maria vai com as outras”... e, para onde uma vai, as outras seguem, mesmo que seja por cima dos pés de alguém que não seja da sua própria espécie. E que o digam os nossos pés e canelas...

Nesse dia, não sei se inspirada pela cabras que por lá andavam também misturadas, andava armada em alpinista. Tudo o que era muro e cerca, lá estava eu a saltar em vez de dar a volta ou esperar que me abrissem portas. Ao fim de alguns saltos e, já com algumas nódoas negras de caneladas bem dadas e distribuídas pelas nossas amigas ovelhas, o esperado aconteceu... Calculei mal a distância até um carrinho de mão, caí mal e lá fiquei a ver estrelas novamente... Desta vez, o resultado não foi nada partido mas fiquei sem um bom pedaço de carne na perna que, mesmo assim, não me chegou a servir de emenda e, muito menos de aviso para o que ainda me estava reservado...

O dia alongou-se... Nas últimas horas de trabalho já nos arrastávamos um pouco e, os meus pinotes foram trocados por uns saltos mais lentos, medidos e arrastados, não sei se pelo calor, se por terem sido tantas horas de pé, a levar “massagens” agressivas nas pernas e a furar caminho por entre ovelhas que teimavam ser agora melhores amigas e não se desgrudavam umas das outras. O dono das ovelhas deixou-nos com o pai, sr já de certa idade, de bengala, que lá nos ia animando mas de ajuda pouco valia. Foi numa das vezes que esvaziámos o curral que a desgraça aconteceu... Tínhamos de levar as ovelhas para o outro lado da estrada só que, no chão, havia uma “porta” tipicamente alentejana de arame, rematada com arame farpado por cima. As ovelhas decidiram ir pelo caminho mais complicado, por cima do arame farpado, o que não seria muito grave se estas não estivessem acompanhadas pelos seus filhotes borregos. É que, onde uma ovelha salta, os borregos ficam. Ao vêr este espectáculo nada agradável, as ovelhas a atropelarem-se e a tropeçarem umas nas outras e os borregos a serem espezinhados e/ou caçados na rede e no arame farpado, ficando para trás, até atravessarem a estrada completamente sozinhos e desorientados, não consegui ficar parada. Não sou santa e, tenho de admitir que no momento não me apetecia nada ter de assistir a um atropelamento ou passar o resto do meu dia a coser animais e, foi este o pensamento que me deu forças para correr atrás de um dos borregos que tinha ficado para trás e que estava completamente desorientado para ir ter com a mãe. Atravessei a estrada numa corrida desenfreada e comecei a descer a ladeira por onde o borrego se tinha enfiado e que findava numa cerca de arame com o dito cujo arame farpado. O bicho já estava preso no arame e não parava de balir e de se contorcer sem que a mãe, do outro lado da cerca, desse sinal de si. Na minha descida, torci um pé, caí, rebolei até ao borrego e, para me agarrar, o que haveria de melhor senão o arame farpado? Desatei-me a rir (que mais fazer numa situação caricata como esta?), levantei-me a coxear e a sangrar da mão, agarrei no borrego, soltei-o do arame e pu-lo do outro lado. Fui então presenteada com uma corrida quase histérica até à mãe, como se tivesse sido ela a heroína da história... e nem um balido de agradecimento me deu, o ingrato...
Quando cheguei ao pé dos meus colegas de trabalho (que entretanto também já tinham caçado e orientado os seus respectivos borregos), com estas mazelas e lhes contei o sucedido recebi no meio de risotas um: “por este andar, daqui a uns tempos temos a Dra sob a forma de um puzzle ambulante!”...

Tácticas de ser puzzle II

No dia seguinte lá tinhamos mais umas freguesas à nossa espera que tinham sobrado do dia anterior. Talvez por estarem há mais de 24 horas fechadas no mesmo recinto, isoladas do resto da manada e em contacto físico muito próximo, apresentavam-se com um humor muito oscilante...

Começámos o trabalho quase mal chegámos ao local e tudo parecia estar a correr bem até ter tido a minha primeira lição de vôo. Tal como em todas as lições de vôo, a primeira coisa a aprender é a arte de bem cair e lá nisso devo-me ter esmerado e tirado a melhor nota de sempre. Estava a tratar de uma novilha, bastante mal humorada por sinal, que me queria presentear com mais um entalão de mão com cornada grátis. Como precaução, desloquei-me um pouco para a parte de trás do animal e ZÁS, quando dei conta estava de rabo muito bem aterrado no chão. Conseguiu dar-me um coice certeiro por entre as barras (lá malabaristas estas vaquitas eram), atirar-me ao chão, rasgar-me o fato macaco, fazer-me soltar a língua e provocar mais uma vez risota geral quando me levantei e voltei ao trabalho como se nada fosse.



Para que não fiquem com a impressão errada, de Super-mulher tenho pouco. Nos dias seguintes as dores foram algumas e aí sim lá me queixava de vez em quando da minha má sorte mas sempre com bom humor.

Tácticas de ser puzzle I

Quando nem há uma semana se está no nosso primeiro trabalho “all by yourself”, a chefiar uma equipa que pouco ou nada ainda se conhece e nos aparece finalmente a espécie animal com que mais nos encanta trabalhar e pela qual até acabamos por achar que os cinco anos de curso teórico valeram a pena, o nosso instinto de sobrevivência fica um pouco para o reduzido...

Estava ainda nos meus primeiros dias de trabalho no ADS (Agrupamento de Defesa Sanitário) de Mértola, quando me deparei com o meu primeiro serviço de rastreio e de desparasitação e vacinação de vaquitas. Foi grande o entusiasmo associado a um certo sabor a desafio visto que seria a minha primeira vez a lidar com bovinos de carne em Portugal e gostaria de evidenciar o que de melhor há em mim em termos profissionais. É que o facto de ser mulher nesta profissão, aliado a uma cara de miúda que ainda nem acabou o secundário, dificulta um pouco a nossa credibilidade como veterinária competente num meio cujo sexo maioritário é o masculino. Quando cheguei ao local, fiquei satisfeita por encontrar condições muito semelhantes às encontradas nas minhas pequenas voltas pelo Mundo... pelo menos algo (para além dos próprios animais) era-me familiar. Apresentei-me como vet mas nem mencionei a minha origem “alfacinha” não fosse assustar o produtor.

Iniciámos o trabalho...

Nada de muito complicado... As tarefas estavam divididas entre mim e os meus dois ajudantes. Enquanto um identificava individualmente os animais, comparando o número dos brincos com os respectivos Boletins Sanitários (correspondentes ao nosso BI) e inscrevendo-os numa folha (a chamada folha de sangues) por ordem de entrada, o outro colhia sangue da veia caudal, vacinava e desparasitava os animais. A mim cabia-me a tarefa de, com uma tesoura, cortar o pêlo de duas zonas do pescoço de cada animal (separadas por um palmo), medir as pregas de pele recém “rapada” (dados também inscritos na folha de sangue) e injectar os dois tipos de tuberculinas (aviária e mamífera), um em cada prega, para futura comparação de resultados. Tarefa nada complicada SE os animais não fossem na sua maioria jovens e irrequietos, e SE a tesoura cortasse... mas até estes contratempos tornavam o trabalho mais entusiasmante. Nada como estar no campo e ter de lidar com algumas limitações e imprevistos.
Ao fim de algumas horas sob Sol intenso, o calor começou a apertar e os bichos começaram a impacientar-se... A tesoura decidiu entrar em greve e passou a pouco ou nada cortar, as mãos começaram a estalar com bolhas e o cansaço de termos começado o trabalho há algumas horas atrás começou a manifestar-se. Já tinha ficado com a mão entalada duas vezes entre as barras da manga (corredor de metal onde os animais ficam relativamente imobilizados e podem ser tratados com maior segurança) mas, à terceira, foi de vez. Nem me lembro muito bem de tão rápido que foi. Só me lembro da dôr e dos gemidos dos presentes como se tivesse sido a sua própria mão a ficar esmagada entre os cornos de uma das novilhas (vaca jovem) e uma das barras de ferro. Ah, mas lembro-me bem de ter ficado a vêr tudo estrelado à minha volta e ter uma vontade imensa de insultar o bicho de todas as formas possíveis. Quando me perguntaram como estava só lhes disse um “estrelada” e “a tentar manter-me muda”. A risota foi geral e voltámos ao trabalho quase findado. Um mês mais tarde vim a descobrir que naquele dia tinha partido alguns ossos da mão...

Por caminhos Alentejanos

No Alentejo, um dos maiores desafios a enfrentar e a ultrapassar no dia a dia de trabalho de um veterinário de campo é conseguir encontrar os famosos montes com respectivas explorações, seguindo as indicações dos respectivos habitantes.

Uma das minhas situações mais caricatas deu-se em Corte de Pinto.

Já não íamos dentro dos horários previstos mas a verdade é que já tinhamos andado às voltas para descobrir que Vale de Serpa não ficava no Concelho de Serpa mas sim no de Mértola. Finalmente descobrimos que este era um monte (e não um vale) que ficava para os lados de Corte de Pinto, num caminho de terra batida em direcção a Serpa. Chegados a esta localidade pedimos a um dos traseuntes por indicações. Estas foram claras: “Siga em frente, contorne a rotunda, vire à esquerda, contorne o campo da bola e depois é sempre em frente, sempre em frente, sempre em frente...”. Seguimos mais do que religiosamente as indicações, prestando atenção aos diversos montes por onde passávamos em busca de algum sinal de vida. Andámos, andámos, andámos... passámos por várias bifurcações, por várias explorações, subimos, descemos, encontrámos vacas, ovelhas, porcos, galinhas... e nada. Tentámos telefonar à D. Antónia, nosso contacto na Cooperativa, mas ficámos sem rede enquanto esperávamos resposta (não admira, estávamos na terra-de-ninguém), decidimos avançar até encontrarmos alguém.

Após mais umas subidas e descidas demos com uma casa no meio do nada que, por sorte, até estava habitada. Quando recorri ao típico: ”Oh da casa!”, assumou-se à porta de sua habitação uma figura bastante caricata. Parecia-se com o famoso Abraham Lincoln mas numa versão mais campestre: patilhas compridas, vestes mais modestas e com o sempre amigo e companheiro de viagem, faina e gulosaima de qualquer alentejano que se preze, canivete na mão. Como já calculávamos, tínhamos passado há muito a dita exploração e as novas indicações basearam-se num sempre em frente e num “já quando a avistar a aldeia, à direita, encontram uma espécie de galinheiro”. Voltámos para trás... bastante atentos ao hipotético galinheiro que nenhum de nós se lembrava de ter passado durante o percurso inverso. Voltámos a subir, descer, a passar por vacas, ovelhas, porcos, galinhas, virámos as nossas cabeças para o lado direito e... nada. Arriscámos inclusivamente a subir a alguma das explorações humanamente inabitadas mas nada que se parecesse com um galinheiro e ninguém foi avistado. Voltámos à Corte de Pinto para recolha de novas informações.

O novo informador limitou-se a repetir o já conhecido: “Siga em frente, contorne a rotunda, vire à esquerda, contorne o campo da bola e depois é sempre em frente, sempre em frente, sempre em frente...”. Decidimos procurar outras fontes... A D. Antónia entretanto já tinha conseguido falar connosco a dizer-nos para nos dirigirmos ao posto dos correios que lá alguém nos daria indicações mais precisas. À procura dos correios deparámo-nos com a Junta de Freguesia, com os seus bancos corridos cheios de velhotes desdentados, de cajado na mão, em alta cavaqueira e convívio... Desci da carrinha e dirigi-me ao guichet da entrada sem antes ter deixado de saudar os meus amigos compadres. Aqui toda a gente se fala.

Lá dentro a ajuda não foi muita... e não foi por falta de informadores (chegou até às empregadas de limpeza). Viémos cá fora perguntar aos velhotes, conhecedores destas terras e dos seus mais recônditos recantos, se já tinham ouvido falar do monte ou do seu dono. Após uns tantos “Ah, não será o filho de...”, “Não, talvez seja o dono do restaurante Y...” e outras tantas relações familiares, lembra-se a sra da Junta de Freguesia de perguntar se o Sr. Brás (dono do gado) não era o sobrinho de um dos velhotes que se limitava a abanar a cabeça como clara prova de desconhecimento. De repente fomos surpreendidos com um “ Talvez seja o meu sobrinho, ele chama-se Brás... ”

Seguindo as novas pistas, lá fui eu ao mercado à procura da esposa do Sr Brás, visto que o sr em questão já estaria na exploração, deseperado por ver uma carrinha branca passar para a frente e para trás e a meter-se em caminhos alheios há mais de meia hora. Encontrada a respectiva sra, convenci-a a vir connosco porque as suas instruções limitavam-se às indicações anteriores (...sempre em frente, sempre em frente, sempre em frente...) e não estavamos interessados em retomar as mesmas andanças. Após alguns minutos demos com o sítio, conhecemos o então já famoso Sr Brás, antigo pastor que se decidiu a ter o seu próprio rebanho, e foi com grande surpresa nossa que viemos a saber que o sr velhote que tão convincentemente abanava a cabeça em prova de desconhecimento do seu próprio sobrinho não era mais do que o seu padrinho de baptismo, o que equivale a dizer que tinha sido ele a escolher o nome do próprio Sr Brás!

.....................................................................................................

Passadas umas semanas voltámos à Corte de Pinto, desta vez para outra exploração que também desconhecíamos localização e para a qual tivemos de pedir por mais algumas informações. Foi dificil aguentar as gargalhadas gerais quando fomos presenteados com um “siga em frente, contorne a rotunda, vire à esquerda, contorne o campo da bola e depois é sempre em frente, sempre em frente, sempre em frente...”.

Uma outra vida

Como se tornou meu hábito dizer: fui veterinária numa outra vida! =)
Como foi uma profissão da qual me orgulho, pela qual sempre lutei, acreditei e quis seguir desde tenra idade e sem qualquer tipo de dúvidas, não podia deixar passar em branco esta minha experiência que tantas saudades deixou e continua a deixar. Sinto que estes anos de pausa me fazem crescer em nostalgia e me fazem sentir que estou a perder como que o fio à meada. Mas, o meu espírito não desistiu. Desde o primeiro momento em que decidi seguir o ramo de veterinária de província, mais dedicado aos grandes ruminantes (vacas), nunca mais consegui abafar este meu espírito de campo por baixo de uma experiência exclusivamente citadina até aos meus 20 anitos. Comecei por me empregar numa vacaria nos arredores de Lisboa e o resto do "trilho" não foi difícil de seguir.
Tenho saudades do cheiro a silagem, feno acabado de colher, das próprias vacas e vitelinhos de leite. Tenho saudades de contemplar os primeiros raios solares a despontarem no horizonte e de arregaçar as mangas (literalmente) para o trabalho. De me deitar no chão para fazer partos, de enfiar a mão, antebraço e braço até ao ombro (e mais coubesse) no canal do parto, para alinhar uns ombros ou focinho mal colocados. Ou então, conseguir palpar um pequeno corpo lúteo num ovário indicativo de uma inseminação artificial mais frutífera, ou mesmo uma ligeira dilatação de um dos cornos uterinos indicativo de uma gravidez de 40 dias (com tempo de gestação de 9 meses). O cheiro a terra molhada, os mugidos como ruído de fundo, o arranhar dos sapatos num chão de gravilha, enfim, acho que podia estar aqui a descrever mil e uma coisas das quais sinto saudades e das quais também ainda não desisti.
Como continuação de algumas crónicas que fui escrevendo ainda como vet, porque não havia um dia igual ao outro, vou tentar através deste blog partilhar com vocês algumas das minhas vivências mais caricatas e, ao mesmo tempo, tentar dar um rumo a esta nostalgia e à minha crescente vontade de escrita. Aqui ficam então alguns dos testemunhos desta minha outra vida.